Coração de mãe
- Rosa Donnangelo
- 5 de out. de 2015
- 3 min de leitura

Nós duas partilhamos de um pensamento: “o machismo é uma praga”.A bagagem de palcos, rodas de samba e vivência dessa mulher deve ser aplaudida de pé. A voz grossa, um tanto rouca na fala, soa divinamente em canção. Só não é mais agradável que um riso e outro em meio às histórias de sua vida.
Maria Aparecida da Silva Trajano, mais conhecida como Tia Cida, é negra dos cabelos grisalhos, do sorriso largo e não demonstra a idade. É dona de 75 primaveras muito bem vividas e de um título que faz jus à sua trajetória - “Mãe do Samba de São Mateus”, bairro da zona Leste de São Paulo.
Os seus caminhos cruzaram com o do samba por genética, a mãe amava dançar e a carregava junto com os irmãos para as festas. Mas eles só podiam dançar marchinhas! O sangue festeiro da progenitora da Tia Cida não deixava passar um aniversário dos filhos em branco. “Primeiro chamava o seu João, que tocava violão, o seu Mané do cavaquinho e os meninos do pandeiro”, conta ela. O quintal, na casa simples, lotava. O samba rolava até de manhã. E assim, Era festa o ano todo. E não deixou de ser assim até hoje, mesmo a mãe já tendo falecido.
Tia Cida sempre lutou pelas minorias do bairro de São Mateus, onde mora desde 1975. "Menina, nós fomos a oitava família a vir morar no bairro", conta ela. "Aqui era tudo campo. Olho pra São Mateus hoje e falo "quem te viu, quem te vê". A vontade de ajudar os outros é também herança da mãe e da avó. “Primeiro eu tinha que olhar para o meu próximo, ver se ele precisava de alguma coisa. E essa foi a educação que a gente teve desde criança”, relembra.
Hoje ela está morando no Carraozinho, pra lá de Sapopemba, e fica feliz com a evolução do bairro que abrigou sua infância e a de seus irmãos. Foi lá, em São Mateus, que ela ajudou muita mulher a superar o silêncio e o medo de denunciar seus companheiros pelas surras diárias. Se hoje é Assistente Social formada, Tia Cida deve muito a essas pessoas. Foi por elas e pela necessidade de cada uma que ela buscou um curso superior para atuar na área e intervir nos problemas da comunidade.
Quatro filhos, oito netos, um bisneto e o “Berço do Samba” de São Mateus, grupo que ela ajudou a criar, fizeram com que Tia Cida tivesse uma família imensa, de coração ou de sangue. As comunidades de samba resgatam valores de quando o ritmo tinha raiz nas lutas sociais e nos comunidades. Segundo Tia Cida, grupos como o dela tem o papel de manter o pessoal jovem dentro do samba que ela considera verdadeiro.
A elitização do samba a chateia, mas a vontade de cantar não diminui. “Não tem mais o pessoal simples. Hoje, a gente vê que o filho tá aprendendo a tocar com doutor, não com os amigos”, lamenta.
O racismo a acompanhou desde os primeiros anos de vida; já a chamavam com certa regularidade de “negrinha”. O alerta do tio era para que ela sempre fugisse dos brancos. “Vocês não sabem o que o branco é capaz de fazer”, ele dizia. Daquela época ficou uma certeza e bons ensinamentos: “7 palmos abaixo da terra, não tem diferença, minha filha”.
De racismo a machismo, a mãe do samba de São Mateus já sofreu bastante. Quando ela era jovem dizia-se que “mulher que sambava era puta”. Alguns membros da família a condenavam por gostar de sambar e diziam que ela não ia arranjar casamento. As tias faziam questão de lembrar quando um primo ou prima casavam, pra ver se ela deixava o vestido rodado para outros carnavais. Que nada! Aí é que ela sambava mais. Trabalhava a semana inteira, mas a sexta era sinônimo de alívio porque o batuque, em qualquer boa roda de samba, acalmava a alma e levava embora as tristezas.
Entre um cigarrinho e outro, e um bom gole de café, Tia Cida comenta sobre o repertório amplo que ela tem na memória e o quanto ainda é estimada pelo público. “Estava lembrando outro dia, que a Luana [responsável pela assessoria] me disse que queriam Tia Cida no CÉU de São Matheus! Eu disse que ia a pé, porque é perto. Falaram que eu era boba, que artista não anda a pé. Não é que tinha gente pra me buscar?”, gargalha espantada com o ocorrido. Ela não tem a dimensão do que representa para a história do samba paulista, mas a humildade soa bem.
Viva, Tia Cida!
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