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A autenticidade e o bom samba de Fabiana Cozza

  • Rosa Donnangelo
  • 3 de nov. de 2015
  • 8 min de leitura

Em entrevista ao Flores do Samba, Fabiana Cozza comenta sobre a carreira, a trajetória no samba e o papel que desenvolve como mulher e cantora em um ambiente ainda predominantemente masculino.

Como a sua formação influencia na sua forma de fazer arte?

Sou formada em Jornalismo pela PUC e estudei música pela Universidade Livre de Música Tom Jobim, atual Emesp (Escola de Música do Estado de São paulo - Tom Jobim). Acho que a formação que influencia na música começa na minha casa, com o meus pais, mais especificamente meu pai, que foi intérprete do Camisa Verde e Branco. Ele cantou, teve conjunto e foi o responsável por me apresentar a música do mundo. Não só a música brasileira, mas a americana, o jazz e também a música brasileira dos grandes compositores, de Milton Nascimento a Nelson Cavaquinho, de Paulinho da Viola a grandes intérpretes.

A minha formação influencia na forma como eu vou me posicionar e tenho me posicionado. Eu sou uma artista muito curiosa, muito conectada com o que está acontecendo no seu tempo, sou de certa forma uma pesquisadora, e isso o jornalismo me ajudou muito, nisso de buscar a informação, ouvir história e ler.


Como é ser mulher e estar no samba? É um ambiente machista ou não?


Acho que é um ambiente machista. Acho, que primeira coisa, ser mulher é difícil pelo fato de pertencermos a um gênero que já nasce em desvantagem. Historicamente e socialmente em desvantagem. Por nós não termos necessariamente os direitos assegurados de maneira igualitária, começa por aí. E aí todo o comportamento, todas as regras, todo o emponderamento é masculino e não feminino. Nesse sentido, o samba não foge a isso, a essa regra e a essa exclusão.

Eu comecei no samba com o meu pai, que já era um homem respeitado no meio. O fato de eu ter chegado no samba pelas mãos dele me deu de certa forma uma carta, para que num futuro, porque eu não sabia se ia ser cantora ou não, eu pudesse chegar numa roda já identificando determinados códigos de comportamento, que existem em qualquer lugar.

Tem código de comportamento para você entrar em uma igreja, para participar de um evento com um presidente, para entrar em uma sala de aula, e para entrar no samba também. E esses códigos eu aprendi. Muitos deles são familiares, como pedir licença pra sentar na mesa, não chegar dando ordem em um lugar onde as pessoas não te conhecem, etc. Coisas básicas, mas que fazem parte de uma certa cartilha dos samba.


A mulher dentro do samba sempre teve um lugar de cuidadora. Nas escolas de samba, por exemplo, elas cuidam do pavilhão, das fantasias, da comida, da organização das festas e também de um certo tipo de cantar, que não é o cantar da solista lá atrás, mas é o cantar do coro. Elas são as cabrochas e não estão necessariamente na linha de frente. Essa coisa da linha de frente vem de 40 anos pra cá. E isso eu falo do ponto de vista de participar de uma comunidade de samba, por exemplo. Eu venho de uma escola,a Camisa Verde e Branco, que não tem mulher na velha guarda, o que eu acho um absurdo.

Hoje em dia nós temos mulheres na presidência, que é o caso da Solange na Mocidade, da Angelina na Rosas de Ouro e da Luciana, na Tom Maior. Mas eu acho que isso não é uma realidade ainda. É uma mudança, mas não é algo estabelecido.

Existe um comportamento feminino, hoje de reivindicação, de denúncia de uma série de abusos contra a mulher, do abuso verbal e da violência física.

A gente começa a ter uma sociedade um pouco mais atenta e denunciante nesse sentido, em relação a essa causa, que é uma bandeira mesmo, e o samba não ficaria de fora. Não seria exclusividade do samba você ter um ambiente preconceituoso, é uma questão da sociedade e o samba só reproduz.


Já sofreu assédio, ou recebeu algum tipo de cantada por estar visível, comandar um show e estar a frente de uma banda?


Acho que sim, várias vezes. E aí nós temos que nos masculinizar um pouco, é uma questão de dar limites. Nós temos situações que, se passam do limite, passam a ser violência. Acho que não é só uma questão de limite de fala. Passa a ser uma questão de segurança. Isso eu nunca sofri. Não tive nenhum problema de me pegarem, de me atacarem, isso nunca aconteceu. Mas de dar limites aos homens por uma aproximação que eu não aceito, que eu não permito, isso sim. E aí eu sou muito firme, falo com muita tranquilidade e coloco todo mundo na casinha (risos). E eu tenho um grupo de homens que me acompanham, e eles me defendem muito, então eu não sinto tanto esse assédio, vamos dizer assim. Já me livrei de algumas tranquilamente.


Você comentou sobre códigos comportamentais, no caso, em rodas de samba. Você, por exemplo, acompanhava seu pai nesses eventos, mas podia estar ali porque estava com ele, certo?


Eu estava no meio sempre levada por ele. Mas quando eu fiquei adulta, e aí eu já era mais independente e dona no meu nariz, eu ia às rodas de samba sem dar a carteirada de que eu era filha do meu pai. Eu odeio essa carteirada. Só que eu ia com os códigos que eu tinha aprendido. E quando me permitiam, eu sentava na roda pra cantar e eu vencia pelo talento. Minha arma sempre foi o cantar, a voz. Sempre foi.

É muito importante você respeitar os mais velhos, conhecer a hierarquia da roda de samba.


Existe algum código específico para uma mulher?


Sim e eu vou te falar códigos que são machistas. A mulher é como você se veste e isso te coloca como uma mulher que merece ter respeito por eles ou não. Se você sentar numa roda com shortinho você é uma, se você sentar como eu vim hoje, com uma saia, você é outra. Porque o shortinho tem outro lugar no samba, você pode ser passista, e você vai ser respeitada. Mas sentar na roda de samba é sentar no meio da sagrada família, entendeu? São os músicos, são os batuqueiros, são os homens que fazem a música acontecer. Eu não sei se tenho uma visão muito radical, mas isso é o que eu vejo. Eu nunca fui para uma roda de samba com uma roupa curta, até porque meu pai não deixava. Ele dizia: “Jamais! Você é uma menina de respeito”. Não deixa de ser machismo. Até porque não é porque você está com uma saia que você está disponível.

Outra coisa é você chegar pegando um instrumento sem ter sido convidada, mas é uma coisa geral. É difícil uma mulher ter permissão de tocar. Acho que tem uma outra coisa que pode ou não ser machista, depende da interpretação: qual o papel da mulher em uma roda? Ela vai cantar, não tocar. Hoje mudou muito. Eu penso que o cantar, pra mim, é algo que acontece com o sagrado, então a mulher tem a permissão de trazer o sagrado pra roda.

Nesse cantar as mulheres são respeitadas.


Você acha que o samba está elitizado?


Elitizado depende de quem fala dele, de onde ele é veiculado. O samba sempre esteve aí e sempre vai estar. O samba vira moda porque determinados veículos elegem o samba em determinadas situações que lhe convém. Mas o povo que gosta de samba sempre esteve no samba.

Eu nunca deixei de escutar samba porque a televisão falou que era hora ou não era hora de escutar. O que eu acho é que nós temos espaços para distanciar o samba de onde ele realmente vem, porque não é interessante pra muita gente. Ele é muito preto, ele é muito escuro. Ele é muito pobre, ele é muito favelado. E aí as pessoas fazem uma maquiagem pra dizer, olha que legal, vem curtir o samba na vila não sei o que lá. Mas essas apropriações errôneas acontecem em outros gêneros também, acontece com o forró, com o sertanejo, com a música rural. Essa cultura tupiniquim, né? De criticar a ciclovia aqui, porque São Paulo não pode ter, mas em Amsterdã, tem que andar de bicicleta. É chique andar de bicicleta em Amsterdã, mas aqui não, aqui não pode.

Isso é quase parte da nossa genética de povo colonizado e colonizado por gente que também veio pra sacanear, gente que veio pra tirar, pra roubar, matar. Essa soberba que a gente tem, de achar que sabe muito. Nunca fui num samba com segurança na porta, me desculpa. Sabe por que? Existe um congracamento quando as pessoas se encontram no samba, um respeito, o tal do código. Que ninguém precisa falar. Eu não sei, eu não vou em samba elitizado.


Qual a importância de levar sua música para os jovens?


Eu acho que a maior contribuição que eu posso dar nesse sentido é de falar “olha como isso te pertence”. Porque aí a gente vai buscar as origens, vai buscar a história, vai discutir as heranças, a escravidão. Uma contribuição é essa. A outra é olhar e se questionar como a Fabiana, que é mulher, negra, nasceu em uma família humilde, conseguiu viver disso, viaja o mundo com o trabalho? Fabiana pode ser um exemplo pra mim. E essa é a outra contribuição e é muito legal também. Você se tornar uma figura que pode espelhar alguém. E eu falo isso sem a menor pretensão, porque eu sou um grãozinho de areia, eu não tenho ainda um nome nacional, mas eu já acho que eu sou uma figura que pode representar alguém, o que aumenta minha responsabilidade. O que eu vou falar, o que eu vou fazer, que tipos de compositores que eu gravo, etc.


Existe alguma canção que você se recusa a cantar por alguma ideologia que você tenha ou, trazendo um pouco mais para o meu trabalho, por ser machista?


Eu acho que sim, uma música que pregue violência ou um apartheid de qualquer espécie eu não canto. Essa música não diz de mim. Agora, uma música de esperança, de amor, de fé, de positividade, de denúncia, essa eu canto desde sempre.


E Clara Nunes, Fabiana?


Clara Nunes eu ouço desde pequena e em 2012 eu fiz uma homenagem a ela, e foi um show que encheu minha vida de coisas boas, de beleza e de uma consciência mais profunda do meu papel também, de como eu posso chegar nas pessoas e cada vez mais com uma identidade muito minha. Porque era um risco fazer esse trabalho pelo tamanho que a Clara tem ainda e vai ter sempre, pela obra que ela deixou, pelo cantar, pela personalidade cênica e artística que ela tinha. Ir para o palco com essa bagagem e sem a proposta de imitar a clara, porque nunca foi isso, renderam encontros fabulosos com os amigos que eram próximos a ela, com a família, de poder ajudar uma creche que a irmã montou. E aí que você vê que a arte pode abrir caminhos e fazer a gente abrir os olhos pra coisas que estão muito perto da gente e muitas vezes, nem percebemos. E foi o caso dessa creche, que precisava de uma ajuda pra quitar um dívida e a minha colaboração ajudou. Por isso que eu digo que a música tem uma conexão com o sagrado.


Qual o público que frequenta o seu show?


É um público bem diversificado, e eu agradeço por isso. Porque eu também já rodei por muitos lugares nos últimos anos, então as pessoas uma hora me veem com orquestra, outra hora numa roda, participando com artista internacional então isso vai pulverizando, diversificando muito o público.


Como você escolhe seu repertório?


Paixão. Paixão pela canção, pela melodia, pela música e também pelo que a letra diz, porque o que a letra diz, ela diz de mim. Eu não posso falar alguma coisa que eu não acredito.

Outro dia eu aprendi uma coisa com um amigo meu. Ele contou que o avô dele diz assim “Você não abre a porta de casa dizendo para a pessoa “quem era?” e sim, “quem é”. Eu acho que a escolha do repertório é muito particular, mas quanto a mim e em relação à maneira como eu encaro a minha vida artística, ele está sempre relacionado ao que eu preciso dizer, ao momento em que eu me encontro. A gente tem que prestar muita atenção nas palavras, porque a canção é som e palavra.



 
 
 

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